30 abril 2013

cento e três

A minha memória daquela terra vem sempre acompanhada do calor sufocante do verão e do cheiro a figos, e por isso foi com estranheza que passeei sob um céu nublado, apertando o casaco contra o vento frio. Estranhei também ver que a rua tem nome e até placa - "Rua da Adega" - quando sempre a conheci como "a rua de nossa casa, a que vai até à estrada principal, de alcatrão". Essa rua já foi para mim muito longa e larga, e o que mais gostava nela eram as silvas que a ladeavam e de onde eu roubava mãos-cheias de amoras ao final da tarde, quando o sol já não era tão forte.
A meio da rua fica a casa da Rosário, cada vez mais velha e pequenina, mas sempre miúda. Fazem-lhe muita falta as cabras que já vendeu, e a mim fazem-me falta os queijos que deixou de fazer. Tem sempre por companhia um Carriço obediente (nunca teve um cão com outro nome), que a segue para todo o lado. Penso sempre se será esta a última vez que a vejo, e desejo sempre que não seja. O riso e o brilho dos olhos da Rosário fazem tanto parte daquele lugar como as casas, as oliveiras e as minhas recordações.
Entro em casa e vejo que, surpreendentemente, aguentou bem as chuvas deste inverno rigoroso. Tirando as teias de aranha e o leve cheiro a ratos mortos na loja, está quase exatamente como estava da última vez que lá fui (há quanto tempo terá sido?). Lá fora já não há caminho para a eira, só feno e ervas que crescem indiscriminadamente por ali. A avó diz que não é problema, que se arrancam facilmente. O tanque já não servirá para grande coisa, e a horta já desapareceu há muito. Mas o cheiro das flores é incrivelmente intenso e quase compensa a paisagem.
Quando lá voltar vai estar calor, e vou querer comer figos e maçarocas de milho assadas na fogueira. Vou querer refazer o trilho para a eira onde aprendi a jogar à Bisca, e deitar-me em cima do poço à noite para ver as estrelas. E de regresso, como hoje, hei-de ir visitar as pessoas mais queridas da minha memória, sentar-me junto delas e admirar as flores de plástico, dar-lhes um beijo e saudades, e deixar com elas esse passado até à próxima vez.



inspiração: Val da Couda

29042013

Sem comentários: